sexta-feira, 8 de maio de 2020

Lia percebeu que sua vida girava em torno de conter perdas. O grande medo de perder. Desde pequena, mesmo a comida ela forçava, nada posto no prato podia ser perdido. Fazia de tudo pra consertar os brinquedos quebrados, nada ia fora, se não mais usava, ia pra alguma outra criança. Gostava de doar, não era igual a perder. As roupas puídas parece até que eram suas preferidas, aquelas assim à beira do rasgo. Do mesmo tanto do medo era o desejo. O frisson da iminência da perda temida. O romance trágico com objetos e pessoas. E voilà a narrativa de base depois que perdeu porto. Começou a brincar com as perdas, se atirava a elas. Antes eram fantasias, se pegava aqui acolá fantasiando com desenlaces, mortes, incêndios, implosões. Mesmo suas paixões adolescentes existiam apenas ali, em suas fantasias, com finais dramáticos de desavença, de amor impossível. Agora não, depois de perda tão concreta, as outras não serviam se não fossem reais. A fantasia se reconfigurou: era o ter/ser. O real era o quase ter/ser mas perder, fazer perder. Eis o roteiro. Fantasiar completo, fazer meio, buscar perder, doer, mendigar cuidado - se só sabia se quebrar não saberia ela mesma cuidar de si. Cuidar dos outros, talvez. Mas no cuidar dos outros-ela, sentia ela a dor do outro. E doía mais. Até quando? Sim, a velha sina, pérolas vinham do machucar da areia, mas precisava ela reter tanta areia? Cultivar areal no lugar de tesouros? E se beleza surgisse de dores outras? Já há tantas por todos os cantos...

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